...
Desvencilhei-me de minha mãe com certa graciosidade, enquanto exibia um sorriso envergonhado e murmurava:
- Eu sei, mamãe. Mudanças são difíceis para todos nós, e eu assumo isso. Tanto assumo que digo à senhora que, bem no fundo, ainda quero dar meu adeus particular a essa casa, que foi palco de tantas outras mudanças em minha vida...
Minha mãe me lançou um olhar de ternura e se afastou aos poucos, balançando a cabeça grisalha em um gesto de compreensão. Mal me certifiquei da saída dela e voltei aos tropeços para o quarto, tomada pela curiosidade doentia.
Cheguei ao closet e a caixa ainda jazia ao chão, lacrada. Abaixei-me sem classe nenhuma, na avidez de descobrir qualquer outra coisa a respeito desse objeto que foi deixado para trás, enquanto tanta mobília fútil esperava por nós no caminhão de mudança. Minha mãe claramente queria se desfazer dele, e em meu íntimo a pergunta "POR QUÊ?" não parava de ressoar.
Sacudi a caixa mais uma vez, mesmo sabendo que os cadeados não se abririam com esse gesto e eu só veria pó, mais uma vez. Para a minha total surpresa, dois segundos depois, vi algo além de cinzas. Através da poeira fina que embaçava o ar, vi a silhueta de minha mãe se projetar no closet.
Ela se aproximou de mim com as mãos erguidas, esperando que eu devolvesse a ela o que a pertencia. Não tinha ideia de minhas feições nesse momento, mas tenho quase certeza que elas mostravam nada além do puro espanto. Eu seria repreendida por estar mexendo no que não era meu? Trairia a confiança de minha mãe ao querer resgatar um passado propositalmente abafado por ela? Ou será que ela me contaria a chave de todo esse mistério? Foram segundos de tensão, isso eu posso contar.
Coloquei a caixa pesada em seus braços frágeis, com muito cuidado. Minha mãe me direcionava um sorriso de afeição misturada à preocupação, e eu soube por seu olhar que ela me contaria, a contragosto, o que tudo aquilo significava. Pude murmurar apenas uma palavra:
- Mãe??....
Minha mãe colocou a caixa com dificuldade em uma prateleira mais baixa do closet, onde ela ficou com metade de seu comprimento para fora por ter sido mal posicionada. Não me importei, pois logo depois disso mamãe segurou minha mão direita, atraindo minha atenção. Enquanto a segurava com firmeza, me lançou um olhar duro que era totalmente dissolvido pelo sorriso terno em seus lábios.
- Lara, querida. Nunca quis te envolver nessa história. Saiba disso. Saiba também que eu sei que você é mais do que crescida para saber de qualquer coisa que tenha acontecido, só que meu frágil coração nunca foi capaz de suportar a dor de te ver sofrer o mesmo tanto que eu sofri àquela época. Acho que eu não conseguiria partir desse lugar sem te contar o mistério que rondou essa casa por tanto tempo, então de certa forma agradeço por essa oportunidade, e peço desculpas por ter demorado a tomar coragem para fazê-lo.
Franzi o cenho enquanto olhava nos olhos lacrimosos de minha mãe. Ela prosseguiu, com a voz levemente embargada:
- Sua prima Roseli, que morreu aos cinco anos. Você provavelmente só a conhece por fotos, e é natural, você era muito pequena quando ela..enfim... Você tinha um ano e meio enquanto ela tinha essa idade, e é até reconfortante que você não se lembre de nada. O que você sabe pela história e pelas fotos, é que ela morreu, exatamente nessa época.
Minha mão começou a suar, ainda que envolvida pelos dedos enrugados e cheios de anéis de minha mãe. Não me preocupei em esconder o nervosismo, ainda que isso tornasse as coisas mais difíceis para ela.
- Roseli era, na verdade, sua irmã mais velha.
Mamãe engoliu em seco e prosseguiu, com dificuldade.
- Ela morreu enquanto você era muito pequena e de um modo muito trágico, então não quis manchar sua alegre infância com esse episódio.. aceito ser criticada por isso.. fui muito criticada àquela época e aceitarei isso hoje de você, eu só.. não consegui me ver maculando sua inocência infantil com uma história tão pesada como essa.
Não afrouxei minha mão, agora molhada, da dela. Ela parecia corresponder ao aperto, em um gesto de aparente solidariedade. Minha voz saiu rouca quando perguntei:
- Mas a Roseli foi.. assassinada.. a facadas.. foi o que me contaram desde a minha adolescência..
A boca de mamãe agora se retorcia em um medonho e trêmulo S horizontal. Ela respirou fundo e falou assustadoramente rápido, como que se livrando das palavras há muito tempo engasgadas:
- Assassinada. Pelo seu verdadeiro pai, que suspeitava que Roseli fosse fruto de uma traição minha. Nunca foi verdade. O homem que te criou é seu verdadeiro pai, não de sangue, mas de coração. Sua irmã foi cremada, e...
Nesse instante, interrompendo o discurso de minha mãe, a caixa preta caiu com um baque surdo no chão, por ter sido mal colocada na prateleira. Lancei um olhar aterrorizado ao objeto, ao compreender que se tratava da urna das cinzas de minha irmã. Todas as peças se encaixavam agora, na mudança mais bizarra de toda a minha vida.
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A caixa, eu e mais um personagem
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
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2 Comentários:
- Lais disse...
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Peço sinceras desculpas pela demora, eu realmente não pude postar no meu dia.
Desculpa também pelo tamanho do texto, é que no fim das contas a história foi desenrolar mesmo é no meu post.. então, querendo ou não, precisei de espaço para uma narrativa decente.
Desculpas também para quem achou muito pesado o final, e queria algo mais alegrinho! hahuauhauhauh
Espero que alguém tenha paciência de ler, e que goste! (tô pedindo demais.. hahahaha) -
16 de agosto de 2010 às 21:06
- Ciça Alvim disse...
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Gostei muito, Laís! Li até o final, o texto é envolvente e não nos deixa perceber seu tamanho! Não achei o final pesado de uma forma incomoda, gostei da importância que a história ganhou. Bom, antes tarde do que nunca, certo? hahaha A história precisava de um final!
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17 de agosto de 2010 às 20:04
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