Uma História Felina

sexta-feira, 4 de junho de 2010


Ele levantou de manhã com a promessa de voltar com comida. Quatro gatinhos bem pequenos, com os olhinhos recém abertos, espreguiçaram-se do cantinho cheio de papelão em que dormiam, e lançaram um olhar de desalento enquanto o papai saía mais uma vez.
O gato esguio saltitou pela saída do beco, entre caixas, pichações e sacos de lixo. A vida era difícil: Logo agora que ele foi abençoado com quatro vidinhas frágeis, a vigilância sanitária resolveu fechar o restaurante de frutos do mar em frente à sua casa, do qual ele costumava alimentar a si mesmo e a seus filhotes com ossos, escamas e cabeças de peixe. A solução? a criatividade reinar quando a fome batia.

Chegou à rua que cortava o beco. Olhou com ressentimento para os dois lados, nunca se sabe quando a carrocinha está no bairro a levar gatinhos (não são só os cachorros que viram sabão) embora, a mesma carrocinha malvada que levou a mamãe gata naquele dia tão triste, logo depois de dar à luz.
Barra limpa, nenhum camburão à vista. Saltou até o passeio, de onde começou a procurar alguma ideia. À direita, o açougue; não, o dono de lá odeia animais e a última vez que ele lascou uma costelinha, saiu de lá a pauladas. Arriscado demais.
À frente, a padaria; não, a Sra Naná, dona do lugar, é alérgica a pêlo de gato e tem pavor a eles em qualquer lugar do seu estabelecimento. Aquela vez que ele se atreveu a colocar a patinha nos fundos da padaria, foi expulso a pontapés.

E quem sabe a casa daquela vovó boazinha que sempre dava leite a ele quando estava cuidando do jardim e o via passar? Aquela casa amarela da esquina, da Sra. Francisca.. A velhinha mesmo ninguém via mais, por algum motivo desconhecido, mas os bichanos repararam que a casa andava mais movimentada, e diziam por aí que o netinho dela se mudou pra lá. O pior é que ele maltratava muito os animais do bairro que passavam pelo quintal dela. Três cachorros saíram ganindo do quintal só na semana passada, dois gatos com latas amarradas no rabo, e o terreiro era cheio de passarinho morto. E a Dona Chica, legal do jeito que sempre foi, não impedia essas crueldades? O gato não entendia. Mas mesmo assim resolveu tentar, só torcendo para tudo dar certo e seus filhinhos terem o que comer nessa noite fria que se aproximava.

Se esgueirou pelo buraquinho do muro de tijolos da casa, tão conhecido por ele. Com cuidado, estreitou os olhos verdes à procura de alguma criança maldosa: nada, tudo ok. Com sua agilidade felina, saltou elegantemente até a soleira de Dona Chica, mas nesse caminho.. Um pedaço de graveto pontudo o atingiu com velocidade na perna esquerda, e uma dor lancinante o avassalou de uma vez. Sem pensar, liberou toda a sua dor:
- MIAAAAAAAAAAAUUUUUUUUUUUUU!!!!
Caiu com estrépito no tapete da entrada da casa, e olhou para sua perna: quebrada. Aliás, era o que parecia, estava articulada pro lado contrário que deveria estar. Desesperou-se, sem conseguir se mexer.
A imagem de seu agressor se aproximava, tornando-se cada vez mais nítida: Um menino de uns 9 anos saía de trás de um arbusto, sorrindo maldosamente, olhos estreitos de tamanha perversidade, sardas por todo o rosto. A atiradeira na mão, alguma espécie de brinquedo sádico com o qual machucava os pobres animais. Pronto. Acabou. Fim da linha. Seus filhotinhos morreriam de frio e fome no mesmo beco que ele deixou esperançoso nessa manhã. Fechou os olhinhos de medo enquanto a criança o levantava com suas mãos rechonchudas...

Até que Dona Chica abriu a porta, cabelos brancos presos com um palitinho no alto da cabeça. Estava imobilizada do tronco para baixo em uma cadeira de rodas, ahá, era isso. Aí estava o motivo de ninguém mais ver a velha molhando as flores do jardim. A senhora espantou-se com a cena e disse, com a voz rígida:
- Marquinhos! Que miado alto foi esse daqui do quintal?
Lançou um olhar de decepção ao pobre gato imobilizado nas mãos do neto, cujo sorriso sumia devagar do rosto redondo.
- Estou muito admirada com o seu atrevimento em maltratar animais mais uma vez..O que tínhamos combinado? Esse gatinho não fez nada de mal para você.
Com cuidado, tirou o gato perplexo das mãos de Marquinhos, que estava revoltado. Fechou a porta, deixando a criança sozinha no quintal, e entrou na casa com o gatinho aninhado nos braços quentes, se sentindo em segurança.

Naquela tarde, Dona Chica improvisou uma tala e sarou a perna do nosso protagonista. Deu a ele muito leite e até um pedaço de bife, sabendo da fome que ele sentia. Agradecido, o responsável gatinho levava na boca um pacote de ração amassada, para filhotes, enquanto ronronava na beirada da cadeira de Dona Chica.

A velhinha realmente salvou o dia, enquanto telefonava à mãe de Marquinhos, pedindo para buscá-lo de volta ao interior.