Que (diabos) será isso?

sexta-feira, 4 de junho de 2010


Querides, eu não vou contar uma história nesse tema musical, e o que colocarei aqui não tem a menor pretensão de se aproximar de literatura alguma. Quero falar de um tema específico, traduzido em uma polêmica musical tripla: o clichê interpretativo.

Já ouvi dezenas de especialistas dizendo que a concepção atual de arte não leva em conta o que o autor pretendia passar com sua obra, e, sim, o que as pessoas entendem dela.Tinha até um professor que falava assim: “Na interpretação vale tudo, só não vale falar que o texto tem a ver com a Coca-Cola”.

Essa ideia de interpretação representou um grande avanço para o entendimento da arte na medida em que nos livrou de problemas puramente metafísicos, como o de tentar descobrir o que o autor pensou na hora em que compôs sua manifestação artística e pesquisar toda sua biografia para entender a obra.Entretanto, assim como outras novidades, essa liberdade foi tão banalizada que se tornou quase impraticável,devido aos tamanhos absurdos que produz.As conseqüências bizarras são tantas que fazem os alunos de ensino médio terem aulas específicas para interpretar determinados livros e poemas.E o professor ainda tem que avisar que não pode relacionar com Coca-Cola.

A Coca-Cola da vez é relativa a uma trilogia de Chico Buarque: “O que será – Flor da Terra”, ” O que será- Abertura” e “O que será- À Flor da Pele” .A maior parte das pessoas só conhece a “Flor da Terra”.As três músicas foram feitas para a peça “Dona Flor e Seus Dois Maridos”,em 1976.Pergunte para seus coleguinhas que conhecem essa música do que eles acham que ela se trata.A maior parte vai dizer que é sobre a ditadura.Alguns ainda se arriscarão em justificar com uns dois ou três versos e mencionar a data em que ela foi criada.

Antes de dizer qualquer coisa sobre isso, gostaria que olhassem a letra das composições:



Abertura

O que será que lhe dá
O que será meu nego, será que lhe dá
Que não lhe dá sossego, será que lhe dá
Será que o meu chamego quer me judiar
Será que isso são horas dele vadiar
Será que passa fora o resto do dia
Será que foi-se embora em má companhia
Será que essa criança quer me agoniar
Será que não se cansa de desafiar
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os unguentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem juízo

À Flor da Pele

O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os unguentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite

O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os tremores me vêm agitar
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os suores me vêm encharcar
Que todos os meus nervos estão a rogar
Que todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz implorar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo

À Flor da Terra

O que será que será
Que andam suspirando pelas alcovas?
Que andam sussurrando em versos e trovas?
Que andam combinando no breu das tocas?
Que anda nas cabeças anda nas bocas?
Que andam acendendo velas nos becos?
Estão falando alto pelos botecos
E gritam nos mercados que com certeza
Está na natureza
Será, que será?
O que não tem certeza
Nem nunca terá!
O que não tem concerto
Nem nunca terá!
O que não tem tamanho...

O que será? Que Será?
Que vive nas idéias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Está na romaria dos mutilados
Está nas fantasias dos infelizes
Está no dia a dia das meretrizes
No plano dos bandidos dos desvalidos
Em todos os sentidos
Será, que será?
O que não tem decência
Nem nunca terá!
O que não tem censura
Nem nunca terá!
O que não faz sentido...

O que será? Que será?
Que todos os avisos não vão evitar
Porque todos os risos vão desafiar
Porque todos os sinos irão repicar
Porque todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E mesmo padre eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno vai abençoar!
O que não tem governo
Nem nunca terá!
O que não tem vergonha
Nem nunca terá!
O que não tem juízo


“Está na fantasia dos infelizes”- Por que alguém realmente acha que a ditadura, a censura, a opressão poderiam estar na fantasia de alguém?Ou atiçam os ardores de alguém?Ou que são “uma aguardente que não sacia”? Talvez Chico estivesse mesmo querendo falar de ditadura, mas tenha ficado sem ideia e resolvido escrever um tanto de coisa sem o menor sentido para preencher as três letras. É um escritor tão descompromissado, né.

Existe uma linha muito tênue, na análise de qualquer texto, entre a interpretação que leva em conta sentimentos pessoais instigados ao entrar em contato com a obra e aquela conduzida pelo mais bruto senso comum. É claro que muitíssimas pessoas que ouviram, por exemplo, “Cálice” ou “Apesar de você” perceberam na hora que as letras eram protestos de Chico contra o regime vigente. O problema incide em interpretar com base na lógica matemática e começar a achar que o fato de o músico ter composto uma dúzia de letras relacionadas a um mesmo tema significa que todas as outras duzentas composições provenientes dele terão semelhante pretensão. Realmente é bem bacana compartilhar com outras pessoas o entendimento relacionado a um texto, mas quando alguém chega e fala que “O que será” só é sobre a ditadura (ou que um soneto renascentista tem a ver com Coca-Cola) , a construção artística se esfarela em um segundo,dando lugar a uma ideia industrialmente produzida e um tanto quanto perturbada.O próprio Chico Buarque, em 1992,ao ler sua ficha no Dops-DPPS, em que há uma análise de "O Que Será" como algo referente à ditadura, declarou ao Jornal do Brasil: "Acho que eu mesmo não sei o que existe por trás dessa letra e, se soubesse, não teria cabimento explicar..."

Convido todos vocês a buscarem um significado pessoal para essa trilogia, algo que venha realmente de dentro, livre de qualquer desgastado conceito introjetado pela sociedade. Só assim é possível imaginar, sem assassinatos à arte, uma liberdade de sentimento do leitor.Daí se alguém conseguir me explicar, de maneira coerente, como dá para achar que essas músicas são protestos contra a ditadura, por favor me escreva o mais rápido possível, porque eu terei que procurar uma nova forma de entender o mundo real.Enquanto isso não acontece, fica a minha sugestão do que a trilogia se trata.Por causa de cada verso em particular e pelo contexto na qual foi criada, só consigo pensar que ela fala de amor.