"Por quanto tempo fiquei ali, chamando pelo nome dela? Não consigo me lembrar. Desse dia, o que me recordo com amargura é o sentimento que inundava meu coração: de desespero, de desamparo, de incredulidade. A certeza de que a qualquer hora eu acordaria era sólida, afinal de contas aquilo só acontecia mesmo em pesadelo de quem comeu muito no jantar.. Mas não. Para meu sufoco, a cada instante os destroços do gigantesco avião se tornavam mais reais, e o contraste da selva com uma centena de corpos despedaçados era ainda mais horripilante.
- Viviane!!!! Viviane!!! Vi!!!
Como podem imaginar, eu não obtive resposta aos meus gritos. Nem nesse dia, nem no próximo, nem no próximo depois do próximo..até ficar sem voz, desistir de vez da minha mulher e de nossa tão sonhada lua-de-mel em Paris.
Parece impossível que em um acidente aéreo dessa magnitude só eu tenha sobrevivido com pequenas escoriações, e ainda tenha parado em uma floresta qualquer por aí. Pois é, não quero discutir as razões ou as brincadeiras do destino, mas foi o que aconteceu. Vivo aqui há aproximadamente cinco anos, pelas minhas contas..E nesse tempo, fui devidamente hábil para construir uma cabana digna dos pais do Tarzan, pescar no mar com as habilidades invejáveis do loirinho protagonista da Lagoa Azul, e me sentir tão solitário quanto o Náufrago. E com um agravante: eu não tinha uma bola de vôlei chamada Wilson para me confortar nas noites de chuva.
Antes que contrastem a minha habilidade selvagem com a notável incapacidade de sair desse lugar, já que tive a chance por longos cinco anos, já adianto: nesse tempo todo eu só pude avistar um navio e um avião. O avião passou dois dias após o acidente, acredito eu que procurando por vestígios de sobreviventes. E teriam me achado, se eu não fosse um novato incapaz na floresta.. nesse dia eu estava dolorido de picadas de insetos, com fome, sem nenhuma perícia na selva, e sem capacidade de acender uma fogueira a tempo para que eles me vissem. Não preciso nem expressar aqui a minha frustração depois desse episódio, e por quanto tempo eu me puni por ter sido tão inocente com a minha chance de ouro.
A aparição do navio foi há uns cinco meses atrás, e foi duas vezes mais frustrante. Desde o episódio do avião, eu mantenho junto à praia a fogueira já preparada para ser acesa, acreditando na possibilidade de ser encontrado. Ao ver o navio, a primeira coisa que fiz foi acendê-la. Pular junto à fogueira, gritar, fazer sinal de fumaça, nada disso funcionou para que me vissem nesse lugar maldito.. acho que era um navio cargueiro, pela velocidade que passou pela costa.
Depois disso, tentei construir canoas, jangadas, mas todas elas eram frágeis demais para ultrapassar a arrebentação. Não sou um engenheiro, não exija grandes construções navais de minha parte.. Além do que eu provavelmente morreria de fome em alto mar.
Então, minha última saída, ou artifício para não ficar louco.. é escrever essa maldita carta. Para quem? Para você mesmo, que está lendo agora essas linhas mal traçadas.. se vai funcionar, se vão me encontrar vivo, eu sinceramente não sei. Mas sabe como é, sou um escritor sonhador, e a presença dessa garrafa de água mineral que sobreviveu ao acidente combinada com papel e caneta da minha mala de mão foi irresistível. Lançarei essa garrafa ao mar, hoje mesmo, dia 12 de dezembro de 1994 (aos meus cálculos). Se você recebê-la em um ano compatível com a minha expectativa de vida (quero dizer, se passar de 2035, por aí.. esqueça, foi bom você ter lido algum traço meu dessa vida terrena), por favor, tente mobilizar as autoridades competentes, sei lá quem elas são, a me encontrar. Eu viajava junto de minha esposa rumo a Paris, voo 8734 do dia 5 de setembro de 1989, e caimos nessa ilha após quatro horas de viagem.. Isso é só o que sei.
Por favor, espero que através dessa garrafa eu tenha alguma chance de, um dia, retornar ao mundo do qual eu sempre pertenci.
Afeto,
Paulo.
12 de Dezembro de (aproximadamente) 1994"
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Voo 8734
sábado, 10 de julho de 2010
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1 Comentário:
- Aléxia disse...
-
Meu sonho é encontrar uma garrafa assim....nem que seja com apenas uma palavra escrita!
Nossa, adoro esses textos que nos fazem demorar um tempão para entender onde está o tema!E vc criou essa coisa de expectativa muito bem, eu já estava tipo "aimeudeus, cadê a garrafa?" -
11 de julho de 2010 às 22:40
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