Olhos do-contras

segunda-feira, 12 de julho de 2010


É sair um pouco do foco da história contar, exatamente, como o olho funciona mas, acreditem em mim, ele não focaliza a imagem como ela deveria ser focalizada. Ele a vira de ponta-cabeça. Quer dizer... Chega, na sua retina, uma imagem de cabeça para baixo do mundo externo. Aí você deve estar se perguntando "como é, então, que eu vejo tudo direitinho?!?" A resposta não é tão complexa. Seu cérebro, que é mais esperto que a gente, já sabia que dessa visão de cabeça para baixo, e desvira tudo para que "a anta que comanda o cérebro" possa ver tudo direitinho...

O estranho é que nem todas as pessoas podem receber essa mesma resposta para a pergunta que você deve ter se feito. E é aí que entra a nossa história:

Cícero era um homem que nasceu com uma anomalia muito rara no cérebro. Ele parecia não ter aquela partezinha que virava a imagem captada pelos órgãos oculares de cabeça para baixo. Ou seja, Cícero via tudo tudo de ponta-cabeça.

Tinham aquelas pessoas que eram meio burrinhas e que falavam cima, querendo dizer baixo, ao falar com ele. Mas o nosso cima era o cima dele, só que se nós víssemos como ele vê, veríamos que o 'cima' estava embaixo. Entenderam? O homem vivia uma vida normalíssima, afinal de contas, ele nasceu nessa perspectiva. Pra ele, aquilo era o normal e ele nunca havia se incomodado com esse aspecto curioso de sua vida. Quem o conhece até o ouvia dizer muito: "Acho que deve ter um monte de gente assim e que não sabe!".

Mas, num belo dia, Cícero estava vendo a paisagem com seu amigo e o pediu para tirar uma foto com sua Polaroid. O outro tirou, puxou e sacudiu aquele papelzinho até dar pra ver mas, na hora de entregar a foto para seu amiguinho anômalo, deu o papel, por engano, de cabeça para baixo.

Quando o homem olhou para aquele papel, chorou sem parar... Chorou lágrimas que subiam, copiosamente, pelos olhos invertidos de Cícero. Seu amigo, que sempre achou que ele não dava importância, disse, confuso, ao protagonista:
-Calma, amigo! A foto está de cabeça para baixo.
-É lindo! É muito mais lindo do que eu vejo! Eu só vejo céu! Não reparava nessa mudança mágica de cores próxima a montanha!!!
-Mas agora você pode reparar do seu jeito... - O amigo era muito sábio... Quer dizer, pelo menos eu acho... Ah! Você não deve querer saber do que eu acho, voltando ao diálogo:
-Não. O mundo normal é muito mais belo e colorido do que essa minha visão às avessas do meu olho do-contra!

Eu não vou falar das exatas palavras daqui pra frente, porque elas não têm a menor importância... Fato é que o amigo de Cícero tentou conformá-lo e convencê-lo de todas as maneiras possíveis. Mas não foi bem sucedido em nenhuma delas... Cícero queria porque queria "ser normal". Os dois, tristes do acontecido, voltaram para suas casas.

A partir do dia seguinte, Cícero havia começado a procurar opiniões médicas sobre sua visão e descobriu algo, a seu ver (heheheh!! A seu ver!!! ... ah! é... Desculpa...), formidável. A parte do cérebro de Cícero que virava as imagens de volta ao normal, além de ser existente, funcionava perfeitamente bem. Só estava era 'desligada' do resto do cérebro, alguma coisa sobre sinapses importante e bla bla bla de médico.

O neurologista disse, depois de muita insistência de Cícero, que era possível uma cirurgia para 'ligar os pontos' que faltavam. "É como ligar tomadas para permitir que a corrente elétrica passe", dizia o médico. O homem tinha ficado tão empolgado com a ideia de "voltar ao normal" que só pensava em fazer a tal 'ligação de tomadas'... Mas o neurologista disse, com muita propriedade, que essa cirurgia exigia, literalmente, o toque no cérebro humano. Tem de se abrir um buraco no crânio de Cícero, mecher com circuitos em uma área perigosa do cérebro... Era uma péssima ideia a cirurgia. Ainda mais fazê-la em um paciente que consegue viver perfeitamente bem com a anomalia.

Cícero não quis saber e fez a tal cirurgia. No dia fatídico ele acordou feliz, falava "vou nascer de novo!" Sentia as melhores coisas de imaginar que ia ver tudo como os outros, que seria uma pessoa com uma vista muito melhor do que a que tinha agora. Como naquela foto! Cícero morreu na mesa de cirurgia.