Domingo é o dia que despede do descanso e do desgaste da semana que passou e cumprimenta as obrigações da nova. No cais, era o dia do grande movimento e a singularidade dos barcos era encantadora aos olhos do meu velho pai. Domingo era o dia de ir ao cais.
Ele passava horas observando sentado em um banco de madeira úmido, com pregos soltos, completamente desgastado. Passado alguns minutos, fixava o olhar em algum barco, abria o bloquinho e começava a preencher páginas e mais páginas com alguns rabiscos tidos por letras. Quando ele finalizava o texto, fazia um desenho muito elaborado com apenas os traçados básicos do texto original, enrolava o papel e mantinha o olhar baixo, acompanhando o movimento repetitivo das águas. Chegava para o almoço e, terminada a refeição, ia para o porão, onde ficava trancado até a hora do jantar. Só eu fazia ideia do que ele ficava fazendo.
Quando fiz oito anos meu pai me contou da sua coleção de barcos em garrafa e a história de alguns. Curiosamente, os barcos interiorizados eram completamente diferentes, apesar de retratarem um mesmo barco da realidade. Contou também como seu hobbie começou (aos doze, seu pai o pediu para ajudá-lo com a pescaria, ao voltar, enquanto o vovô ficou limpando os peixes, ele ficou sentado olhando o "vai e vem" dos barcos, começou a escrever e, assim que chegou em casa começou a montar seu primeiro barquinho). Naquele mesmo dia, relatou que, era no porão que ele montava a garrafa do dia e guardava dentro dela o texto com o desenho.
Meu aniversário de 17 anos caiu em um domingo. Papai levantou cedo, me levou para o cais com ele, e disse que me daria o presente só quando chegássemos em casa. E que presente! Fui a primeira pessoa a entrar no porão. Fiquei maravilhada, não só pude ver as 2037 garrafas, como pude ajudar papai a fazer o barco do dia e montá-lo, só não pude ter o prazer de ler o texto que era enrolado e inserido junto com a miniatura. Quando terminamos ele disse que aquele era meu e que eu poderia ler o que está escrito dentro de todas as garrafas depois que ele morresse. Lembro que na hora o comentário me assustou, mas entendi depois de exatos 2 meses ao receber a notícia da sua morte.
Durante semanas chorei descontroladamente, pensava que não havia nada capaz de servir de consolo. Descobri meu engano quando, a caminho da cozinha, me deparei com a porta do porão, lembrei da coleção e dos textos contidos dentro das garrafas. Voltei correndo para o meu quarto, procurei desesperadamente pela caixa com meu presente de aniversário. Ao desenrolar o papel, encontrei um poema de aniversário dedicado a mim seguido por um pedido de desculpas. Vertendo em lágirmas silenciosas li sobre a doença que o consumiu, a razão de não ter me contado nada e ainda li a mais bela declaração de amor. Já no final da página, onde supostamente estaria desenhado um barco, tinha um coração. Nele estava pregado com um pedaço de fita adesiva uma chave que eu tinha visto apenas uma vez na vida, a chave do porão.
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Domingo é dia
terça-feira, 6 de julho de 2010
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3 Comentários:
- Filósofo da pochete azul disse...
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nós dois fizemos de barquinhos em garrafas!
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6 de julho de 2010 às 21:22
- Aléxia disse...
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Nossa, que bonito!!Meio sem vírgulas, mas singelo mesmo assim...
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8 de julho de 2010 às 16:20
- Lais disse...
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Ai que tocanteee
me pegou na tpm, quase que eu chorei (Juro!)
É que eu tenho uma relação muito próxima com o meu vovô, e ele é um artista que nem esse da história.
Lindo, Ciça! -
8 de julho de 2010 às 21:36
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