Do vermelho para a eternidade

sábado, 19 de junho de 2010


Juliana acordou com frio, e puxou as cobertas para si. Ficou nessa sensação de aconchego por poucos segundos, até dar-se conta de qual dia aquele se tratava: Domingo!
Domingo era o dia em que ela se encontraria com João, aquele da obra a dois quarteirões de sua casa. Moço direito e respeitador.

Levantou-se com um sorriso estampado no rosto, afastando os cabelos negros e compridos do rosto. Olhou de relance para seu criado mudo, que amparava uma carta amarelada: Carta de José, da feira, que se declarou à moça uma semana atrás. Pobre José.. Juliana nunca corresponderia ao seu amor doentio. Magrelo, desproporcional, olheiras fundas e aquele jeito de maníaco.. esse era o Zé da feira. De qualquer forma, guardou a carta consigo, ainda que com medo de alguma reação paranoica do coitado.
Balançou a cabeça para esquecer daquilo tudo, enquanto ia à cozinha. Bebeu um café apressado e comeu um pedaço de bolo, já pensando em qual roupa usaria. Saiu de casa linda como sempre, em um vestido rosa que a mãe lhe dera um ano atrás.

No parque, com João, tudo são flores. Literalmente, pois João trouxe a ela uma linda rosa vermelha, que ela carregava maravilhada com uma mão, enquanto a outra segurava a do amado. Como alguém tão forte, tão robusto, tão másculo como João, poderia ter tamanha sensibilidade para encantar uma mulher? Ela não sabia de que forma, só tinha a certeza que ele acertava em tudo: Comprou à moça um sorvete de morango, que ela agora desfrutava, emocionada.

A única coisa que poderia estragar essa atmosfera era um conjunto de gritos disformes que vinham do lado oposto do parque, mas esses gritos estavam tão distantes.. não mereciam atenção..
Juliana lançava olhares de admiração ao homem que a conduzia, até que os gritos, que pareciam tão insignificantes, engrossaram. A moça resolveu olhar, de curiosidade: Um homem agora se destacava da multidão e dava passadas largas em direção ao casal, segurando uma faca enorme e com os dentes cerrados.

"OLHA A FACA!"

A moça franziu o cenho, e lançou um olhar de incompreensão a seu amado. Este olhava fixamente para a frente, em um misto de ansiedade e nervosismo; ele percebia a mesma coisa que ela: Aquele não era homem qualquer, era José. Era ele, o feirista, com uma expressão medonha em sua face, tremendo a mão que segurava a faca, tamanha era a sua raiva.
Ninguém parou o homem armado, a multidão gritava ensandecida. Juliana soltou a rosa e o sorvete no chão, agora com medo do que aconteceria. Toda o sentimento de proteção que ela sentia ao lado de João despedaçou-se quando José, sem qualquer resistência do casal atordoado, desferiu vários golpes rápidos no peito do pedreiro. A incredulidade de João naquela situação anulou suas habilidades de capoeira, enquanto ele caía com um baque surdo no chão, ensanguentado e agonizante.
Juliana estava aterrorizada. Seu braço esquerdo era puro vermelho, seu vestido rosa estava manchado de vermelho, o chão era vermelho, o próprio Zé tinha o rosto espirrado de vermelho enquanto se virava para ela. Juliana olhou uma última vez à rosa e ao sorvete derretendo no chão ao seu lado, e tentou se proteger com as mãos, em vão. Dores agudas pipocaram de seu peito, de sua barriga, de seu corpo. Ela podia sentir o líquido quente fluindo por sua pele, e ver com dificuldade o brilho metálico que se destacava do vermelho e passava com velocidade por ela.

Não sentia mais nada, nenhuma dor quando atingiu o solo. Seu último pensamento foi deixar para trás todo aquele vermelho assustador, e ir em direção à eternidade.