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sexta-feira, 21 de maio de 2010



Prezado Doutor,

   Essa imagem é para que você entenda um pouco do que eu sinto toda vez que um evento  "baratício" acontece na minha vida.Certamente o senhor não se esquecerá dessas figuras repugnantes logo que terminar de ler minha carta e, ao menos por um dia, elas ficarão retumbando em sua cabeça nos momentos mais inoportunos.
   Estou escrevendo isso porque sei que alguns de meus amigos tem lhe procurado para dizer que tenho sido atormentado por alucinações.A vez em que larguei meus papeis no meio da Faculdade de Direito e comecei a gritar por socorro foi meio exagerado,concordo. Mas o sr. tem que entender que, na maioria dos casos, não é assim: o meu terno acadêmico, por exemplo, realmente pinica de um jeito que parece ter um bicho assustador subindo em minhas costas, e minha irmã tem uma mania horrível de olhar para o  meu ombro como se um inseto de esgoto desgraçado estivesse pousado nele, pronto para pular em meu rosto.
   É que elas me perseguem.Sério.Esperam até eu quase me esquecer delas para retornarem a protagonizar as piores cenas de terror da minha vida. São traçoeiras mesmo- já até tentei manter um convívio civilizado, ficar no mesmo ambiente.Mas há um carma de ódio eterno delas contra mim.
   Tudo começou quando eu tinha dez anos.Costumava manter uma relação de distância e respeito à espécie, em suas esporádicas aparições.Um dia, meu pai trouxe do Mississipi uma garrafa de vidro linda com uma bebida recém-lançada de nome Coca-Cola, e me deu de presente.Estava super feliz com aquela coisa gostosíssima quando uma barata pulou do vão do sótão direto para meu copo.Quase bebi o negócio, meu pai que tirou de minha mão.Nunca mais consegui gostar de Coca-Cola.O sr. bem sabe que depois que começaram a vender isso em nosso país, não se bebe outra coisa- percebe a tremenda exclusão social na qual fui inserido por isso?
   Entrei num grupo de Literatura para me tentar desviar meus pensamentos deste problema e me encontrava bem-sucedido, até que o Sindicato do Nojo Extremo se lembrou de mim e extinguiu a minha paz.Desde então, já teve barata emergindo do ralo no meio do meu banho, barata voadora batendo nas minhas costas no meio da minha apresentação, barata escondida na minha carteira da escola.E é sempre num ciclo vicioso- aguardam até eu me recuperar do trauma anterior e, quando finalmente paro de andar olhando para todos os lados...ZÁS!NEEEEEIIIINNN!SCHEEEEEEIßEEEEEEE!!!Adeus, trabalho psicológico.
   Atualmente, acho que desenvolvi  esses pequenos surtos porque elas não esperaram o intervalo de recuperação entre um ataque e outro.Três semanas atrás, entrei no elevador da faculdade para depositar livros em meu escaninho e, não obstante ele parar por dez minutos entre os andares 9 e 10, DUAS baratas entraram pelas aberturas de ventilação e começaram a subir nas paredes laterais, de modo que eu só poderia me recolher, para não ter que passar por elas depois, na área da porta, que corria o risco de se abrir a qualquer momento. Depois da amostra grátis de horror intenso,meu único alívio foi pensar que demoraria pelo menos uns dois meses para elas me atacarem novamente. Entretanto, dez dias depois, a situação fatídica: estudava alegremente em casa quando, ao sair do quarto para buscar mais tinta para a caneta, tenho a oportunidade de observar, pelo espelho, uma barata enorme pousar no meu cabelo e se confundir com ele. Saí gritando e correndo para todos os lados da casa e, em sincronia de desespero e pavor, tropecei em meu pé e bati a cabeça na quina da porta, formando um galo do tamanho da maldita que me fez cair.Além de ganhar uma distorção estética até hoje perceptível em minha testa, tive que ficar duas horas preso na sala de jantar, esperando ela sair do corredor.
   Perceba, Doutor, que a situação não configura paranoia- são os fatos externos que se opõem a mim. Essa semana, por exemplo, já trombei provavelmente na única árvore do centro de Praga e na escada da escola de Alemão, visto que não consigo dormir de noite por saber que baratas podem aparecer a qualquer momento para me destruir.
   Se o senhor tiver alguma ideia de como me tirar dessa emboscada constante, por favor me contate o mais rápido possível. Caso isso não ocorra, peço para que converse com a pessoa que insistentemente marca consultas com o sr. em meu nome e explique a ela que estou totalmente bem e NÃO PRECISO de um tratamento psiquiátrico.Para o sr. ter uma ideia, já estou tomando algumas medidas para acabar com isso:interrompi o andamento daquele livro em que sonho ser uma barata ( falei-lhe dele na última consulta, lembra?) e estou focado em algo mais voltado para minha futura área profissional,a Penal, que não tem nada a ver com insetos!
Espero que o doutor entenda a minha situação e tão logo isso ocorra, posicione-se favoravelmente às minhas colocações.

Atenciosamente,

Franz Kafka.